terça-feira, 14 de setembro de 2010

Carta para um amigo apaixonado

            Eu nada te posso dizer sobre o amor. Esse mistério que nasce do mistério e nele termina. Essa luz azul que faz as palavras se recolherem num deserto de silêncio e êxtase. Ele rasga o humano e se instala em outra esfera. Mas me falas que estás apaixonado, e com o coração crispado de alegria e impaciência, buscas algo que te traduza. Ouço-te, mas são teus olhos que me interessam. Eles já não repousam sobre os objetos e as pessoas que antes mereciam tua atenção. Tudo em ti se transformou no desejo pela criatura amada. Esse desejo que inaugura a claridade em tudo que tocas.
             Tu, que sempre foste sereno, começas a te sentir surpreendido com certas acelerações cardíacas, tremores involuntários e a pouca necessidade de repousar. Aos vinte e três anos talvez seja essa a primeira vez que o amor te expulsa de dentro da concha. Lembra-te daquele verso avulso do Quintana: “Amar é mudar a alma de casa.” Por tempo indeterminado estarás ocupando uma morada que antes nem pensavas que existisse, senão em tua imaginação. A paixão promove esse exílio consentido e nos instala numa espécie de paraíso não sonhado. Embora te digam que é pura biologia e que, diante da razão, é possível traduzir essa desordem interior, não acredites. O que se passa não pode ser formulado, mesmo depois de ter sido vivido por quase todos os seres humanos. Ele apenas cobra de nós a entrega. A coragem da entrega, o mais íntimo dos atos.
              Talvez te interesses por poesia ou por encontrar uma música que vá tornar as coisas mais sólidas e significantes ao teu redor. Porque é sempre assim, nesse estado de enamoramento. Tudo se surpreende líquido, tudo escorre entre os dedos para colorir as mãos do ser amado. Não acredites na pura transcendência do que estás sentindo. É com tuas vísceras, com o que há de mais orgânico em ti que amas. Se assim não fosse, a ausência não seria essa lâmina quente que atravessa cada centímetro do teu ser. Bastariam caneta e papel para dar conta dessa felicidade que é também uma espécie sutil de dor. Mas não. Cada minuto longe é suplício de membro sendo arrancado, de fome que não encontra saciedade.
             Explora, exaure, mastiga. Sê o mais perdulário que te for possível. Esquece tudo que não te contamine com a única presença que te faz vivo. Adoece de amor. Torna-te antigo como Abelardo e Heloísa, como Tristão e Isolda. Que tu só encontres a desmesura, aquilo que transborda. Alimenta essa febre que te consome e te torna mais forte. Algum dia ela será tua melhor recordação, o Éden que nenhum deus poderá te dar. Pensa na solidão do próprio Deus, que pode amar a todos, mas não a um ser escolhido. A eternidade já está em ti, mesmo que não dure mais que alguns anos ou mesmo meses.
             Por esses dias descobrirás outro sentido para a Beleza. Ela será mais importante que a Verdade. Deixa-te enganar. Só os muito tolos a perseguem quando estão apaixonados. Tudo ao teu redor gravita como um redemoinho e tua lucidez será não tentar o entendimento, esse reino da ordem que pertence aos que buscam o poder, não o amor. Leia pouco, o menos que puderes. Obedece apenas ao coração, o único órgão que não te trairá. Se quiseres ser confortado com algumas frases, abre qualquer página de uma das mais belas obras que um homem foi capaz de escrever: Os Frutos da Terra, de André Gide. Escuta: “Por muitas coisas deliciosas, Nathanael, eu me usei de amor. Seu esplendor vinha de por elas arder sem cessar. Não podia enfastiar-me. Todo fervor era um desgaste de amor, um delicioso desgaste. Agir sem julgar se a ação é boa ou má. Amar sem se preocupar se é o bem ou o mal. Nathanael, eu te ensinarei o fervor.”
              Que estas palavras te ensinem a esquecer as palavras. Parte para longe delas. “O amor é uma eflorescência sobre a morte.” Salva-te.

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