terça-feira, 14 de setembro de 2010

Autorretrato

            Até o início da idade adulta, minha vida foi um verdadeiro drama mexicano, com direito a enredo de ópera. Achava lindo sofrer. E ai do amigo que não partilhasse essa gula desmesurada pelo desespero. Eles guardam pilhas de cartas encharcadas de lágrimas. Não fui dark por um triz, se bem que por dentro tenha passado anos vestindo preto. Flertava mentalmente com o suicídio quase toda semana. Anunciava em público meu propósito de deixar esse mundo sombrio. O máximo que consegui foi assustá-los. Não ousei ir além da ingestão medrosa de três Lexotan depois de uma grande desilusão amorosa. Dormi o melhor sono da minha vida. Ainda sonho em recuperar aquele Éden provisório.
            Depois, não sei exatamente o que aconteceu. Comecei a achar muito trabalhoso sofrer. O tédio perdeu todo o charme. Olhava para a solidão com certa desconfiança. Ainda era meu brinquedo preferido, mas já via algumas rachaduras que me deixavam meio desconfiado. Montanhas de livros lidos, um prazer mórbido em cutucar a tristeza... e tudo se evaporou como uma bolha de sabão. Foi um grande amor que me salvou? Foram dois anos de terapia? Não sei e bocejo ante a possibilidade de vasculhar o passado. Continuei enamorado das grandes ideias, da arte que traça o itinerário de nossas emoções, do percurso silencioso que fazemos tentando nos traduzir. Mas felizmente me cansei bem cedo de ficar buscando um sentido para tudo. É mais saudável ir experimentando e ver se dá certo ou não. É só me convidar que estou pronto pra ir. Sou fácil, fácil demais. Aprendi a colher bobagens, tirei a sorte grande.
             É muito chato fazer o papel de vítima, achando que um raio está sempre prestes a cair sobre a nossa cabeça. Detesto ser o porta-voz de alguma tragédia. Minha ou alheia. Tudo passa tão rapidamente que eu quero usar a vida até furar a sola, como um filósofo me ensinou. Pode ser com o reencontro de um velho pião de minha infância, um beijo úmido numa tarde de inverno, o gosto áspero de uma bergamota colhida no pé. Tanto faz. Desenvolvi uma espécie de radar intuitivo que faz com que eu me aproxime das pessoas que sabem digerir melhor as manhãs do que os crepúsculos. Amo os crepúsculos, mas sei que eles me enfraquecem com sua poesia de fragilidades. Hoje eu me engano de alma aberta. As coisas passam, mas têm permanência dentro do meu olho. Sou míope só diante de temporais imaginários.
             Tenho gratidões que me abismam. Alguém que me abraça ou empresta seu livro preferido de poesia. Alguém que me oferece uma xícara de café com leite ao lado de um fogão a lenha. É como respirar novamente as paredes da casa de minha avó. Alguém que me oferece uma carona no seu carro, no seu peito, na concha das suas mãos. É nesse mar de ternura que navego, sem precisar de outra bússola. Alguém que tenha a sensibilidade de chegar e partir na hora certa. Uma hora que nem eu mesmo sei qual é, mas que se ajusta às batidas do coração. Alguém que transborda, que não coloca tudo a juros de governo, imaginando algum tipo de garantia. A única garantia é o hálito de cada nova aurora.
               Num certo dia da idade adulta parti de mim mesmo. E nunca mais tive o desejo de me procurar novamente. Sei que posso gostar de Aristóteles e de Chapolin Colorado. Qual o problema? Choro com qualquer drama romântico, cheio de clichês. Não preciso parecer inteligente vinte e quatro horas por dia. Prefiro a leveza, a gargalhada, o aconchego. Faço certas combinações com palavras que talvez deixem algumas pessoas felizes. Não vivo a crédito, vou me gastando o mais que posso. Gosto da contradição, porque ela me torna mais vasto. Tenho dificuldade em desistir, seguro com a ponta dos dedos o único fio da corda que não se rompeu. Ainda não conheci a saciedade, sou curioso e tenho cada vez mais fome. Do meu retrato, ainda estou investigando a moldura. A fisionomia pertence aos outros.

Carta para um amigo apaixonado

            Eu nada te posso dizer sobre o amor. Esse mistério que nasce do mistério e nele termina. Essa luz azul que faz as palavras se recolherem num deserto de silêncio e êxtase. Ele rasga o humano e se instala em outra esfera. Mas me falas que estás apaixonado, e com o coração crispado de alegria e impaciência, buscas algo que te traduza. Ouço-te, mas são teus olhos que me interessam. Eles já não repousam sobre os objetos e as pessoas que antes mereciam tua atenção. Tudo em ti se transformou no desejo pela criatura amada. Esse desejo que inaugura a claridade em tudo que tocas.
             Tu, que sempre foste sereno, começas a te sentir surpreendido com certas acelerações cardíacas, tremores involuntários e a pouca necessidade de repousar. Aos vinte e três anos talvez seja essa a primeira vez que o amor te expulsa de dentro da concha. Lembra-te daquele verso avulso do Quintana: “Amar é mudar a alma de casa.” Por tempo indeterminado estarás ocupando uma morada que antes nem pensavas que existisse, senão em tua imaginação. A paixão promove esse exílio consentido e nos instala numa espécie de paraíso não sonhado. Embora te digam que é pura biologia e que, diante da razão, é possível traduzir essa desordem interior, não acredites. O que se passa não pode ser formulado, mesmo depois de ter sido vivido por quase todos os seres humanos. Ele apenas cobra de nós a entrega. A coragem da entrega, o mais íntimo dos atos.
              Talvez te interesses por poesia ou por encontrar uma música que vá tornar as coisas mais sólidas e significantes ao teu redor. Porque é sempre assim, nesse estado de enamoramento. Tudo se surpreende líquido, tudo escorre entre os dedos para colorir as mãos do ser amado. Não acredites na pura transcendência do que estás sentindo. É com tuas vísceras, com o que há de mais orgânico em ti que amas. Se assim não fosse, a ausência não seria essa lâmina quente que atravessa cada centímetro do teu ser. Bastariam caneta e papel para dar conta dessa felicidade que é também uma espécie sutil de dor. Mas não. Cada minuto longe é suplício de membro sendo arrancado, de fome que não encontra saciedade.
             Explora, exaure, mastiga. Sê o mais perdulário que te for possível. Esquece tudo que não te contamine com a única presença que te faz vivo. Adoece de amor. Torna-te antigo como Abelardo e Heloísa, como Tristão e Isolda. Que tu só encontres a desmesura, aquilo que transborda. Alimenta essa febre que te consome e te torna mais forte. Algum dia ela será tua melhor recordação, o Éden que nenhum deus poderá te dar. Pensa na solidão do próprio Deus, que pode amar a todos, mas não a um ser escolhido. A eternidade já está em ti, mesmo que não dure mais que alguns anos ou mesmo meses.
             Por esses dias descobrirás outro sentido para a Beleza. Ela será mais importante que a Verdade. Deixa-te enganar. Só os muito tolos a perseguem quando estão apaixonados. Tudo ao teu redor gravita como um redemoinho e tua lucidez será não tentar o entendimento, esse reino da ordem que pertence aos que buscam o poder, não o amor. Leia pouco, o menos que puderes. Obedece apenas ao coração, o único órgão que não te trairá. Se quiseres ser confortado com algumas frases, abre qualquer página de uma das mais belas obras que um homem foi capaz de escrever: Os Frutos da Terra, de André Gide. Escuta: “Por muitas coisas deliciosas, Nathanael, eu me usei de amor. Seu esplendor vinha de por elas arder sem cessar. Não podia enfastiar-me. Todo fervor era um desgaste de amor, um delicioso desgaste. Agir sem julgar se a ação é boa ou má. Amar sem se preocupar se é o bem ou o mal. Nathanael, eu te ensinarei o fervor.”
              Que estas palavras te ensinem a esquecer as palavras. Parte para longe delas. “O amor é uma eflorescência sobre a morte.” Salva-te.

Classificados

             Procura-se pessoas que não tenham opinião sobre tudo. Que hesitam antes de proferir sentenças definitivas, pois pensamos e sentimos obedecendo ao momento, em eterno conflito entre a razão e a emoção.
            Procura-se pessoas que caminhem devagar, absorvendo paisagens e objetos, sem devorar o mundo com a fome de um lobo, sem tanta voracidade. Que saibam observar placidamente quem está ao seu lado, o movimento das estações e o quanto a passagem do tempo nos dá e nos tira.
            Procura-se pessoas que ainda se emocionam como na adolescência, diante do estarrecimento do primeiro amor. Que guardam dentro de si um depósito de afeto pronto para ser distribuído diante do anúncio de um abraço, uma palavra destituída de intenções ocultas, um gesto sem outras intenções senão o próprio gesto.
             Procura-se pessoas que saibam perdoar os enganos alheios, pois nos mostram, como um espelho distorcido, o quanto em nós é largo o erro. E acolham com naturalidade a possibilidade do perdão. Frágeis, somos como esses caminhantes do deserto que se deixam fustigar pelo vento em busca de uma sombra para descansar. O perdão é essa sombra.
             Procura-se pessoas que saibam ouvir sem interpor-se à palavra alheia, sempre a dizer que sua dor é maior do que aquela que estão testemunhando. O acolhimento generoso do que perturba o outro pode ser a chave para compreender o que dilacera a nossa alma.
             Procura-se pessoas que acreditam na palavra compaixão, a mais bela que há. Pois somente quando absorvemos o que se passa além da nossa consciência é possível entender a aflição de quem nos pede ajuda. Pedras, plantas e bichos partilham o mesmo destino. Conhecer esta palavra não significa que saibamos gastá-la como um rei perdulário.
             Procura-se pessoas que sejam vigilantes de si e do mundo. Reconheçam a fragilidade da vida e saibam urdir uma espécie de teia protetora para os seres e as coisas. Só o instante é luz, núcleo, aventura que se deve colher com os olhos abertos.
             Procura-se pessoas que critiquem menos, admirem mais. Ver o outro com generosidade não é sinal de fraqueza, mas a possibilidade de visitá-lo em sua própria casa.
             Procura-se pessoas que tenham fé. Num deus, num livro, num amigo, no trabalho que fazem cotidianamente. E saibam ser essa entrega incondicional o primeiro passo para entender que nem tudo precisa passar pela dúvida para ser verdadeiro.
             Procura-se pessoas que instiguem a nossa inteligência, desobedecendo o senso comum. Que não saiam pela vida afora com a lista dos dez mais vendidos da semana. É provável que só assim façamos descobertas inusitadas.
             Procura-se pessoas que não estejam preocupadas em agradar o tempo todo. Muitas vezes é preciso provocar o descontentamento para que algo avance, adquirindo fisionomia própria. Que digam sim ou não. Mas nunca sim e não, simultaneamente.
             Se não se encontrar pessoas com as características acima, ainda assim há que se continuar procurando por alguém que vacile, que saiba esperar, que se acomode dentro do silêncio, que leia poesias em dias de chuva, que estremeça ao calor de outro corpo, que ame a palheta de cores do outono. São elas que instauram um sentido para este breve passeio que estamos fazendo pelo mundo. 

Crianças no divã

             O que vou escrever não é baseado em experiência própria. Não tenho filhos e já me parece meio tarde para pensar nisso. Mas observo. E o que vejo são crianças sendo encaminhadas para consultórios de terapia ainda com o bico na boca. A dificuldade em lidar com certas situações, mesmo que corriqueiras, tem levado pais aflitos a terceirizar a solução de todo e qualquer problema. Não deve ser fácil mesmo. Essa garotada parece que já nasce com um radar acoplado no corpo. Eles perguntam sobre tudo e são cheios de vontades e certezas. A angústia de saber como bem educá-los, somada à falta crônica de tempo, faz com que os ajustes para o desenvolvimento de uma psique saudável passe para a mão de profissionais.
             Não coloco em dúvida a qualificação dessas pessoas que se debruçam sobre os dilemas infantis. A questão é outra. A busca pela resolução desses pequenos dramas domésticos precisa passar sempre pela avaliação de um especialista? Está ruim? Simples, uma hora por semana com fulano de tal. Sem contar que muitas vezes questões minúsculas levam à crença de que por trás disso há um grande drama que precisa ser resolvido. Imediatamente. Aí os genitores desesperados começam a ser assombrados pela mais terrível das ameaças: a culpa por frustrar essas indefesas criaturinhas. Pois é o que de melhor se pode fazer por um ser que está começando a mapear o mundo. Blindá-lo com alguma resistência para quando, na idade adulta, ele for construindo sua história pessoal. De outra maneira, como exigir que ele encontre força interior para não sucumbir diante da menor adversidade? Nem sempre podemos ter alguém ao nosso lado para nos apontar a melhor direção.
             Nutro grande simpatia pela ideia de as pessoas (salvo alguns afortunados que já nascem com uma propensão para a alegria imoderada) frequentarem um terapeuta em algum momento da vida. Muitas vezes é difícil fazer um luto sozinho, elaborar a perda de um amor ou de amigos, encontrar significação para uma existência que parece desprovida de sentido. Conheci pessoas que se reinventaram completamente depois dessa imersão. E estou cada vez mais convencido de que não existe a melhor linha de tratamento e muito menos uma que não funcione para ninguém. Cada um vai ter que garimpar o que mais se adapta a sua visão e às expectativas que pretende colocar em mãos alheias. A extensão do mergulho vai depender da coragem e da vontade de cada paciente.
             Minha implicância é com o fato de não estarmos mais deixando as crianças enfrentar situações de conflito sozinhas. Ou somente com a ajuda dos pais. Tudo precisa ser conforme preconiza a cartilha dos bons educadores. Que inúmeras vezes estão longe de servir de modelo para a formação alheia. Diga-se de passagem, isso também vale para certos psicólogos e psiquiatras, confortavelmente sentados em suas poltronas. É provável que muitos casos ditos patológicos nem precisassem passar por constantes escrutínios. Várias coisas se ajustam com o simples passar do tempo. Mas ficou mais fácil pagar do que ir acompanhando o que acontece a nossa revelia em cada fase da vida. Estamos desconsiderando as forças que se escondem dentro de nós.
            Crianças que não aprendem a caminhar sozinhas podem desenvolver uma paralisia psíquica difícil de detectar lá adiante. Daqui a pouco alguém vai inventar um terapeuta portátil que possa ser carregado pra lá e pra cá, pois elas não saberão mais crescer em solidão. Divã? Sim, mas só quando já estivermos com a alma alfabetizada.

Mentiras Sexuais

            Quando estou com vontade de me divertir, leio alguma pesquisa sobre o comportamento sexual humano.  Beira ao realismo fantástico, à ficção científica. Parece que somos todos muito bem resolvidos. As mulheres sempre têm orgasmo e os homens nunca passaram pelo constrangimento de não ter ereção na hora H. A média semanal com que praticam sexo? De quatro a cinco vezes por semana. Duração? Mínimo de uma hora. Só falta acrescentar que é à luz de velas. Todos satisfeitos com o próprio corpo, felizes com seus cônjuges, trinta anos depois de tê-los conhecido. Tudo asséptico, bonito, perfeito. Pena que nem sempre seja verdade. Ninguém mente mais do que quando está respondendo anonimamente a um relatório sobre suas atividades eróticas. Somos garanhões e ninfomaníacas prontos para atacar quem fizer o mais discreto aceno. O fato é que só nos permitimos revelar nossas frustrações nesses modernos confessionários em que se transformaram os consultórios médicos e terapêuticos. Quanto muito.
           Com isso não quero dizer que a humanidade inteira vive sua sexualidade de forma canhestra, medrosa, frustrada. Mas com tantos interditos que ainda povoam nosso inconsciente e com o desejo desesperado de seguir os padrões ditados pela moda, não é de se estranhar tanta distância entre o “x” que colocamos nas opções de resposta e o que se passa na intimidade. Nossas expectativas deveriam ser um pouco mais modestas, adequadas ao que o mercado oferece. Além do mais, a quebra de alguns tabus seria de enorme ajuda na construção da nossa felicidade afetiva e sexual. O prazer quase sempre é encontrado na sombra, longe de casa, numa hora bem tardia da noite. Não tenho nada contra a transgressão, seja ela de que ordem for. O problema é quando a exceção passa a se constituir na única possibilidade de gozo. Entendido aqui literalmente.
          A socióloga Rose Marie Muraro relata fatos interessantes em seu livro Os Seis Meses em que fui Homem. As mulheres mais humildes, que vivem em espaços afastados dos grandes centros e com baixa renda econômica, costumam seguir à risca o que preconiza a religião e a moral. Já entre a classe média e alta, mais urbana, é bem diferente. Uma coisa é o discurso, todo comportado. Outra é a prática. Muitas ainda permanecem casadas, mas se permitem ter amantes e namorados avulsos sem sentir culpa alguma. Os homens sempre tiveram mais liberdade nesse campo. Com a necessidade de provar que são machos vinte e quatro horas por dia, não é raro saírem à caça mesmo sem muita vontade. Vão para mostrar para os outros que estão com a testosterona tinindo. E aí acabam incorrendo no mesmo erro. Ou seja, o que deveria desencadear um diálogo saudável entre parceiros acaba se transformando numa série de equívocos guardados a sete chaves. Ninguém pode mostrar o que é. Precisamos todos aparentar. A isso se chama sociedade.
           A questão é delicada e é bem possível que vá demorar muito tempo para que essas mentiras em cascata dêem lugar a algo parecido com a sinceridade. Não vejo mal algum em reconhecer que eventualmente falhamos na cama. O egoísmo muitas vezes impera e a satisfação do outro passou a ser secundária. Negar essa situação não ajuda em nada a melhorar o encontro do nosso corpo com outro corpo. Uma das melhores coisas da vida, pois muito já se disse que só os tolos acreditam que sexo é um ato meramente físico. Nunca é. Quando vem acoplado ao amor, é fantástico. Mas, convenhamos, não costuma ser tão ruim quando isso não acontece. Talvez neste quesito as mulheres percam um pouco.  Aproveitam menos do que nós. Querem sempre o pacote completo.
            Não acredite, portanto, em tudo que as revistas Nova e Marie Claire andam divulgando por aí. Não é nada fácil ser aprovado com louvor no quesito sexual. Com menos discurso e mais treino, teremos ação de qualidade.  É a melhor maneira de ser o primeiro da classe.

gilmar.marcilio@pioneiro.com

Macumba Virtual

     A vida pode ser um parque de diversões. Duvido que alguém conheça a palavra tédio se ficar algumas horas procurando por curiosidades na internet. Foi o que eu fiz recentemente, depois de ter sido informado da existência de um site chamado Macumba On-line. É surreal. O anúncio do portal diz: “Tudo o que você conseguiria fazer num terreiro, na tela do seu computador”. Nada é impossível se acessar essa entrada para o paraíso. As promessas vão desde engordar a sua ex-namorada até fazer alguém que não lhe é muito caro desenvolver incontinência urinária. Mas são só dois exemplos de um leque gigantesco de possibilidades. Você paga um preço razoável e todos os problemas de sua vida serão resolvidos numa passe de mágica. Ou, no caso, com um clique do seu mouse.
    Parece que algum devoto da igreja católica, invejoso do sucesso do Macumba On-line, também lançou seu site particular. Chama-se Meu Santo e já conta com milhões de associados. O negócio lá é o seguinte: o interessado escolhe o santo de sua preferência (de uma lista de mais de 200) e faz o seu pedido. Depois paga a promessa com santinhos virtuais ao “módico” preço de 50 reais para cada graça alcançada. Não é mesmo uma graça? Os depoimentos de pessoas agradecidas impressionam. Embora pareça quase inocente, com seu foco mais voltado para conseguir o que se deseja em nome do bem, não se pode negar que essa ideia também se transformou em algo muito lucrativo para o seu dono. E o mais estarrecedor: qualquer um de nós pode fazer o mesmo, basta um pouco de criatividade e um certo tino comercial para que não seja mais preciso se preocupar em sair por aí procurando emprego. O mundo está cheio de otários ingênuos dispostos a pagar qualquer valor para conseguir o que querem sem fazer grande esforço.
    Essas são duas das buscas que dá para fazer quando estamos desesperados. Quem tiver tempo e principalmente paciência (eu não tenho), deve encontrar uma infinidade de outras comunidades que prometem o reino dos céus ainda em vida. Sinal dos tempos, dirão os propensos a ver catástrofe em tudo. Hilário, penso eu, depois de ter desligado o computador sem ter sentido a menor tentação de endereçar alguma mandinga a um eventual desafeto. Prefiro acender uma vela para outro santo. O que fez com que eu me perguntasse o seguinte: a culpa é do jogo ou do jogador? É ótimo que existam todas as opções possíveis dentro desse fascinante mundo da internet. O problema é quando não sabemos mais fazer as filtragens mínimas entre o que interessa e o que é absolutamente irrelevante. E pensei naquela maravilhosa assertiva, tão cara aos exegetas: “Desconfie de qualquer religião que não tenha pelo menos dois mil anos”. A banalização da fé é sintoma inequívoco de que estamos escolhendo os caminhos mais fáceis, os que dão menos trabalho. Estamos nos tornando verdadeiramente preguiçosos, achando muito cansativo até rezar. Parece mais seguro fazer uma terceirização básica para conseguir o que se deseja. Dói um pouco no bolso, mas o resultado promete vir a galope.
     Assim, quase num piscar de olhos, o inimaginável pode se tornar real. Ao menos, presumivelmente. Hoje em dia, nada disso me deixa deprimido e não fico por aí vociferando que é o fim dos tempos. Estamos encontrando, isso sim, outras maneiras de tentar solucionar problemas ancestrais. As consequências de usar métodos pouco ortodoxos para alcançar tantas benesses? Ainda é cedo para dizer algo conclusivo. Um passeio desses não torna nenhum de nós mais sábio ou iluminado. Mas quem sabe essa nova fé virtual possa acabar diluindo um pouco a crise existencial que parece assolar a tantos. Na pior das hipóteses, você pode passar algum tempo brincando de ter o poder que a realidade lhe sonega. Mas não esqueça de colar um papelzinho no canto do seu computador com a seguinte frase de Einstein: “Só existem duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana”. Bom divertimento.

O ideal existe?

Enquanto esperamos pelo ideal, as coisas mais interessantes da vida costumam passar pela nossa frente. E nós nada. Nem uma piscadela. Mas como sofremos por não descobrir o amor que nos arrebata, o emprego dos nossos sonhos, a casa perfeita para morar. Cadê, onde está? Reclamar é preciso. Viver, parece que nem tanto. Tenho uma amiga que costuma escolher o namorado pela qualidade dos sapatos que ele usa. O infeliz que se aproximar dela calçando um prosaico tênis já está riscado definitivamente do seu círculo de eleitos. Se tiver um ótimo caráter, for gentil, atencioso e gostar do Woody Allen, pouco importa. Nota zero. É preciso ser aprovado no quesito ortopédico. Informação adicional: ela é inteligente e culta. Mas seu calcanhar de Aquiles é mesmo o sapato alheio. Continua procurando.
Outro amigo, menos atento à estética da roupa e mais à estética do corpo, há mais de dez anos está caçando uma modelo perfeita para desfilar por aí junto com os seus cartões de crédito. Mulheres agradáveis e espirituosas já tentaram se aproximar dele. Nem bola. Com sua visão enfermiça, segue buscando somente a ideal. Aquela que não existe.
É uma praga que afeta homens e mulheres, como se vê. Se a realidade não bater cem por cento com o nosso sonho de consumo, melhor descartar, concluímos. Nesse processo de miopia seletiva, matamos prematuramente um grande número de relacionamentos que nos fariam mais felizes e nos levariam a resmungar menos. Nunca encontraremos tudo numa só pessoa. Vale para pais, filhos, amigos, namorados. Também para vizinhos, cachorros e afins. Continuamos atraídos pelo distante, pelo inacessível.
Maturidade? Talvez seja pegar o melhor de cada coisa e esquecer os possíveis defeitos. Tudo é uma questão de foco. De deletar da cabeça alguma eventual falha e concentrar-se no que interessa. Minha paciência tem diminuído com aqueles que só sabem destacar o lado ruim das coisas. Se ele pinta, mas nunca será um Picasso, é motivo para fazê-lo desistir? Se o carro do seu namorado é lá da década de noventa, faz alguma diferença no prazer que você tem com a sua companhia?
Ser capaz de ver é mais do que passar no teste do oftalmologista. É refinar a sensibilidade e selecionar com lucidez. Mas para que isso aconteça é necessário, também, que saibamos nos perdoar por todas as escolhas equivocadas que fizemos. Foi o que conseguimos naquele momento. O melhor, o mais adequado. Isso sim parece ser o ideal: não se precipitar nem para escolher e nem para descartar. As primeiras impressões costumam ser levianas.
Se você não gostou do bolo, coma apenas uma pequena fatia. Mas coma. Ficar olhando criticamente não o fará descobrir o sabor. Penso em como são afortunados todos os que se permitem errar e analisar o próprio erro. É preciso reconhecer os escorregões, os tombos, o que não deu certo. Mas não fazer disso uma autoflagelação. Basta ajustar os óculos.
Inteligência é saber excluir o que não nos agrada e agradecer com várias novenas por ter encontrado alguém que nos escolheu para andar ao seu lado. Ninguém explica o mistério do desejo. Basta que saibamos baixar um pouco as nossas expectativas. Até porque deve dar um cansaço danado essa busca frenética pelo que é praticamente impossível de achar. O raro nem sempre é o melhor.

O tempo é um escultor?

Quem de nós já não disse esta frase: “Foi muito difícil passar por isso, mas a experiência me ensinou muito.” Nem sempre, nem sempre. Muitas vezes essas brechas de luz não resistem à passagem do tempo. Elas abrem um fulcro de consciência enquanto a dor nos corrói, mas costumam desaparecer assim que o sofrimento se atenua em nosso interior. Temos coisas mais urgentes em que pensar. Normal. Mais do que isso, é saudável não ficar acariciando as perdas, transformando-as em mascotes de estimação, enquanto nos afeiçoamos ao papel de vítima. Que, apesar de provocar alguns estragos psíquicos, sempre comove os outros. E principalmente a nós mesmos.
Mas há outro aspecto nesta questão que não costuma ser considerado. Com o acúmulo de fatos vividos, com a soma de emoções positivas e negativas, acabamos perdendo a leveza, a curiosidade. Nossas atitudes se tornam mais rígidas. Endurecemos. Perdemos também muito da espontaneidade que parece ser privilégio mais dos jovens, dos muito jovens. Talvez essa equação hospede um equilíbrio necessário para a manutenção do próprio ser. Quando tudo é fulgor e exuberância, fica faltando a sobriedade que se irmana à reflexão e faz com que acertemos mais em nossas escolhas.
Ainda assim, eu não faria a apologia desbragada da experiência. Vamos envelhecendo e, se não tivermos cuidado, tudo vai se tornando menos interessante. É preciso uma força física e emocional extra para sustentar o olhar de espanto sobre o mundo. E perceber como é necessário manter a alteridade em nossos relacionamentos. Continuar aprendendo com quem gosta de fazer esboços, sem o peso e a gravidade de não poder mais errar.
O que o tempo esculpe dentro de nós? O que nos rouba? É recomendável ter muito cuidado para que essa presumível sabedoria que a maturidade nos dá não nos transforme em homens e mulheres tristes. Pior: em chatos cheios de verdades inquestionáveis. A sedimentação de conceitos conduz à intransigência. Como se fosse uma espécie de crime reconhecer que nos enganamos - como se a gente tivesse preguiça para começar de novo. Os caminhos são múltiplos e quase sempre é possível retroceder. O que parece uma espécie de leviandade pode ser o saudável exercício de correr riscos, de experimentar todas as possibilidades que estão a nossa disposição.
Ninguém quer passar horas e mais horas refazendo o itinerário que considerava definitivo. Mas o fato é que a convicção de que vamos nos tornando mais sábios deixa em nós resíduos de arrogância. Será que podemos mesmo ensinar alguma coisa para os outros? O que se chama de vivência não pode ser terceirizada. Cada um trabalha com um martelo próprio e as feições que vai moldando só pertencem a si mesmo. O escritor Pedro Nava dizia que a experiência é como um carro com os faróis voltados para trás.
Seria bom se nos aferrássemos a essa alegria que vemos no rosto dos que continuam nascendo. Ou, se tanto não for possível, pedir emprestado um pouco dessa vontade inquebrantável que os joga para fora de si mesmos, desejando os encontros.
O fastio não precisa ser o prêmio amargo de quem envelhece. Não são apenas os movimentos do corpo que se pode perder. Há algo mais grave: a falta de mobilidade interior.

Ruídos

Num mundo de excessos, o que mais encontramos são ruídos. Não somente esses que ensurdecem e deslocam o nosso centro de gravidade. Se você parar e prestar atenção, vai descobrir uma gama infinita de pequenos barulhos que destroem a nossa tranquilidade. É praticamente impossível encontrar um pequeno espaço que ainda não esteja contaminado. E vamos levando. Só que aquilo que não nos parece grave acaba deformando, lentamente, a forma como recebemos os estímulos externos. Tudo precisa ser berrante, dito em alto e bom som, com o máximo de luzes incidindo sobre o objeto ou a situação que queremos enfatizar. Essa também é uma outra maneira de viver cercado de ruídos. É quando nada mais pode permanecer na sombra, tudo devendo ser exposto como num grande supermercado. E a banalização de nosso cotidiano acaba tendo consequências nefastas sobre a esfera emocional.
O grau de sensibilidade que determina como nos portamos diante das mais diversas situações acaba irremediavelmente comprometido. A existência começa um patamar acima do que nos acostumamos a considerar como normal. Aí esse normal passa a ser o grito, o cheiro agressivo, a corrida, a falta de tempo. Os meios tons desaparecem ou simplesmente não conseguem mais ser vistos quando nossos olhos se debruçam sobre eles. É só dar uma rápida espiada numa festa de adolescentes para descobrir o óbvio: tudo precisa ser visceral, forte, estrondoso, para capturar a atenção dessa turma. Nem vamos falar no repertório musical porque isso já se tornou uma questão quase psiquiátrica. O que vem na manhã seguinte? A descoberta do tédio, de uma realidade vários decibéis abaixo e, compreensivelmente, desinteressante.
Os ruídos nos privam da capacidade de explorar as sutilezas que só podem existir onde há silêncio, essa espécie não catalogada de oxigênio para a alma. Quando nos permitimos uma pausa, quando o impulso de agir já não é tão forte, alcançamos um relaxamento que acaba se parecendo com esses estados de serenidade preconizados pelos místicos. Mas já estamos tão adoentados que mal conseguimos suportar alguns minutos em contato com o nosso interior. Faça a experiência. Tudo se torna incômodo, desconfortável, e corremos em busca de mais doses de adrenalina.
Já que é praticamente impossível parar com o barulho que acontece dentro da nossa mente, poderíamos nos esforçar um pouco para diminuir essa orgia auditiva da qual somos vítimas (e agentes) todos os dias. Quando estou caminhando pelas ruas e um carro se aproxima com o som a todo volume os piores instintos afloram dentro de mim. É que sempre, sempre, sempre é música sertaneja ou funk da pior qualidade – um verdadeiro assassinato do mais elementar bom gosto. E repare: a película dos vidros é tão escura que parece que o carro está sendo dirigido por um fantasma. É uma maneira de se blindar contra a crítica alheia. Como é que alguém pode se divertir incomodando os outros? De onde é que essas criaturas tiraram a idéia de que isso é música?
Machado de Assis reclamava, ainda no século XIX, do forte pisotear do casco dos cavalos que passavam sob a sua janela. Hoje isso nos parece de uma inocência comovedora. São outros os tempos e outras as queixas. Mas temo pelo que o futuro nos reserva. Talvez os mais ricos possam se abastecer de pequenas cotas de isolamento, como hoje compramos ações no mercado financeiro. Ou nem isso. Talvez já tenhamos decretado a morte de um mundo e o silêncio seja mercadoria vencida que ninguém quer mais comprar.

Você é tudo para mim

O ideal romântico de querer ser tudo na vida de uma pessoa ainda persiste. Meio capenga, mas persiste. Por mais que os costumes mudem, por mais que nos demos conta de que nenhum ser satisfaz a totalidade de nossos desejos, carregamos a secreta fantasia de sermos os beneficiários de um amor ideal. Que não existe. E quando imaginamos que ele existe, que peso! Pense na escravidão de ter que atender à tamanha expectativa. Eu continuo preferindo os amores mansos, esses que se fazem dentro de uma ordem que podemos até considerar banal, mas que, quando perpassados pelo tempo, carregam uma madureza com a qual nenhum arroubo de paixão pode rivalizar.
Ser tudo para alguém equivale a abdicar da própria individualidade. A ver na solidão redentora uma espécie de traição para com o ser amado. Estar sempre junto, deslocando-se de si em busca de uma fusão irreal com um outro que não poderemos apreender nunca. Que os deuses me livrem de um amor tão sufocante, feito mais de ciúme e vigilância do que de platitudes e suavidades. Eu o quero bem pequeno, quase anônimo, mas que me permita antever o porto, o descanso das minhas fragilidades. Amor imperfeito, desses que não dariam jamais um enredo de romance. Mas que, em sua modéstia, saiba ancorar o diálogo, a dor e a alegria. E o insondável mistério do mundo que desaparece quando, ávidos, nos atiramos em busca de um amor total.
Eu me sinto incomodado diante desses casais que não sabem partilhar seus dias com amigos, com desconhecidos. Que não sabem incluir nesse querer algumas doses de perigo, de instabilidade. Porque não há segurança alguma, não há data de calendário que determine por quanto tempo seremos merecedores das benesses afetivas de esposas, maridos ou namorados.
Lembro do amigo de longa data que me olhava, sofrendo, e sofrendo me disse: “Ela se apaixonou por outro depois de vinte e três anos de casamento. Nós éramos como irmãos, pensei que nosso sangue já fosse de um único tipo.” Como não sentir medo de entregar os melhores anos de nossas vidas a uma só pessoa? Quando ela vai embora, o que é que fica? Uma dor (quando não uma raiva) tão grande que muitas vezes se transforma em doença física. Existirá alguém tão fascinante que mereça tal doação? Espero nunca encontrar, mas ir seguindo assim, com passos um pouco hesitantes, sem saber com quem vou me deparar um pouco além da esquina.
Parece que a melhor receita de felicidade conjugal continua sendo essa: você, o outro e a dúvida. Como, igualmente, a melhor maneira para prender alguém ao nosso lado é deixando-o livre. Isso sim é atemporal e não obedece a códigos sociais ou aos preconceitos que compramos em cada época. Ficar junto por amor, mas com a consciência de que o caminho mais fácil de destruir isso é sendo tudo para quem resolveu nos escolher como membro único de uma confraria que nem sempre se traduz em felicidade.
Como tudo o mais, a sabedoria está na reserva, na contenção, naquilo que é, mas não é com certeza absoluta. Não tenho vontade de aprender as regras de um jogo diferente, até porque dá muito trabalho e o meu policial interno já recebeu demissão sumária há muito tempo. Quero ser surpreendido com rações diárias de um amor que se interessa em habitar outras casas, mas que queira voltar espontaneamente para mim.